COMADRES
Local: chafariz de aldeia. Chega uma mulher do povo com um caneco na cabeça. Vem muito apressada e diz:
Comadres,
Deixai-me passar à frente,
Eu vos peço por favor,
Porque esta vida da gente
É um horror!
Trago o coração na boca
De tanto correr, correr...
Será isto coisa pouca?
Deixar em casa no berço o mais pequeno
E os outros dois maiorzitos,
Afogados em baba e ranho,
A chorar como cabritos !
As vacas andam no feno
E as ovelhas, em rabanho,
Andam a pastar na horta,
Que fica junto da porta,
Como se no monte fora!
Comadres, tenho já de me ir embora,
Pois deixei o lume aceso
E o peru que estava preso
Saltou para o curral do porco
Que me deita abaixo a casa
De tanto fossar, fossar...
Por tudo isto vos peço
Deixai-me à frente passar
E encher o caneco, sem tardança.
Posso? Posso?
(Põe o caneco a encher)
Oh que rica vizinhança
Deus Nosso Senhor me deu!
Eu vos juro que no Céu
Tereis paga bem maior.
E agora, enquanto o caneco toma a água
Quero contar-vos a mágoa
De um mulher que eu cá sei!
E não dizeis: conta! conta!
Oh que gente esta! Que afronta!
Que nem quer saber, sequer,
Um pouco da vida alheia!
Puxanar é um prazer!...
Por isso eu digo e redigo
Que tenha cá p’ra comigo
Que esta de vir à fonte
É uma grande invenção.
É o tempo de falarmos,
De umas com as outras estarmos,
É a nossa televisão!
Por isso, quando o governo
Não nos põe em casa a água
E muito menos o esgoto,
Defende esta tradição,
Defende esta tradição!
E, por isso, tem meu voto!
(vai ver o caneco)
Ai! Já está cheio! Cá me vou!...
( põe o caneco à cabeça)
Mas antes de me ir à minha,
Sempre quero perguntar-vos:
Ouviste contar aquela do Zé Galo
Que se põe em toda e qualquer galinha?
Vai p’rá í uma falarota!
Seja velha ou garota,
A todas salta na crista.
Dizem que nenhuma escapa!
( Poisa o caneco na borda do chafariz)
Pois outro dia na Lapa,
Quando eu com o gado andava,
Me apareceu esse Diabo,
Só p’ra ver se me atentava!
Era no tempo da giestas,
Quando o Maio puxa ao cio,
O cuco e rola cantava
E nem vivalma passava
Lá nos cimos do Mesio...
Nisto, ele chega, olha e começa:
“Olá flor da revessa!”
E eu que muito bem sabia
Que o que ele queria
Era conversa,
Bico mudo: nem palavra!
Só para ver o que ele dizia...
Mas ele não disse nada!
Em vez disso, deita a mão,
Prende as minhas com as dele
E esmaga-me o coração,
Contra o peito e contra a pele!
Ai! Filhas! Fiquei sem pinga!
Deu-me uma quebreira tal
Que comecei a tremer...
E tremia! E tremia!...
Mas nem um dedo mexia,
Só p’ra ver o que ele fazia!...
E eu vos juro e trejuro,
Pelas cinco chagas de Cristo,
Que não vi ou que, então, fez,
Nem sequer, tanto como isto!
Senti, sim, um furacão,
Um turbilhão, terramoto,
Desabando sobre mim
E o meu corpo meio morto,
Deslizando para o chão,
Como se fora uma cama
De alecrim e rosmaninho.
Ai filhas! E que cheirinho!...
Que é dos gritos que eu não dei?
Que é dos gestos que eu não fiz?
Ai o furor que eu tomei
E me veio da raiz!
O meu corpo ardia em chamas,
Como um fogo de Setembro,
Posto por mãos criminosas!
Oh como toda eu me lembro!...
(Quando me lembro e relembro!)
E me encolhia e gemia...
e gemia e me encolhia...
Só p’ra ver o que ele fazia!
E ele...fez tudo quanto queria!
Finalmente levantou-se,
Quando eu cansada já estava
E não podia mais nada,
Nem com uma gata pelo rabo!...
Ah! Foi então que aquele Diabo
Ouviu desta boca santa
O que nunca ninguém disse!
Ai o que eu disse, comadres!
Ninguém o pode pensar,
Nem sonhar! Ninguém o sonha!...
Umh! Se todas fossem como eu
Não havia sob o céu
Tanta falta de vergonha!...
E riem-se?!
Pois não sei porque é tal rir!
Só porque eu dei do que é meu
A quem mo soube pedir,
Já sou?...
Se assim é,
Como havemos de chamar
A uns senhores que p’rá í há
Que dão o cu à direita
E fazem festa à esquerda?
E toda a gente os respeita!
Sabem que mais?
Bardamerda!
(Faz o manguito e sai. Volta atrás para levar o caneco)
S. P. Sul, 1985
J. Gralheiro
( Integrado no espectáculo da COMUNA – Lisboa: “Farsa você mesmo!” – 1986)
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